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Valéria Eik

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A ressurreição do ego

 

 

1

 

      Olhou, perplexa, a ausência amoitada nos cantos da casa.

      Caminhou lentamente pelos corredores e sentiu o odor das flores agonizantes e o perfume do charuto abandonado no cinzeiro.

      Apertou os passos e avistou os armários abertos, revelando o vazio das sedas, do linho e do algodão.

      Ele se fora. Sem explicações. Uma que fosse, bastava. Mas ele se fora sem deixar bilhetes, endereços, motivos.

      Desabou sobre a cadeira mais próxima.

      Agarrou o telefone e procurou por ele no escritório. Estava em viagem de férias.

      Em pânico, tentou rastrear uma razão através do celular. Fora de área.

      Lembrou-se dos amigos em comum. Surpresos, não souberam explicar.

      Por quê?

      A indagação incansável tomou seus pensamentos.

      Rememorou a convivência pacífica, as festas espetaculares, as viagens luxuosas, o sexo semanal, os diálogos tranqüilos.

      Possui a convicção plena da esposa perfeita que foi. E, no entanto, ele partiu.

 

2

 

      Uma bela e exuberante mulher. Era o centro de todas as atenções naquela festa.

      Apaixonei-me instantaneamente e decidi que ela seria minha.

      Afaguei-lhe as vaidades, fiz suas vontades, escutei pacientemente seus monólogos fúteis.

      Anulei meu próprio ego, refém de um amor doente e unilateral.

      Ela, no entanto, nunca se deu ao trabalho de me perguntar se eu preferia azul ou verde, mar ou campo, chuva ou sol.

      Nunca me deu alternativas como ir ao invés de ficar. Ou caminhar para lá e acolá.

      Compreendo que a culpa foi inteiramente minha.

      Jamais discuti ou discordei de suas idéias tolas.

      Entoei em seus ouvidos, vezes sem fim, a melodia do relacionamento perfeito.

      Para me sentir feliz, bastava escuta-la cantarolar suas frivolidades pela casa.

      Para me sentir enlevado, bastava vê-la desfilar sua nudez pelo quarto.

      Para me sentir completo, bastava beijar-lhe a boca rubra, os seios fartos, penetrá-la com paixão e despejar sobre ela a loucura represada por dias e dias.

      Demorei tempo demais para perceber que não gostava de caviar, charutos e festas.

      E a singela descoberta me levou a outros desejos muito distantes dos desejos dela.

      Resolvi fazer as malas e avistar-me com o mar azul.

 

3

 

      O mar, onda após onda, sussurra em meus ouvidos que devo acarinhar todas as minhas vontades e vaidades.

      E a lua, crescente e faceira, escuta meus monólogos eloqüentes e me diz, noite após noite, que meu ego só faz crescer.

      Tenho a convicção de que, em pouco tempo, estarei curado.

      Sim, serei dono, enfim, de um grande e buliçoso ego.

 

4

 

      Uma única vez falei com ela, por telefone. Gentileza de minha parte. Tranqüilizei-a.

      - Sim, eu estou bem.

Ela me fez outra pergunta, a mesma pergunta que tortura, minuto a minuto, seu cérebro apalermado:

      - Por quê?

      - Questões do ego, minha cara!

 

 

 

Restauração

 

 

      Odiava a esposa. Assim, sem querer, sem nenhum motivo ou por todos eles.

      O cheiro dos cabelos dela, impregnado nos travesseiros. Odiava.

      Odiava as palavras que escorriam garganta afora em sussurros ou gritos.

      A boca que se abria em risos ou gargalhadas. Odiava.

      Odiava os gestos que se debatiam no ar ou no próprio colo.

      Os passos dados em sua direção, os pés desnudos e silenciosos no meio da noite, os saltos altos trincando o assoalho pela manhã. Odiava.

      E odiava, principalmente, aquele seu jeito coquete de olhar e se insinuar e reclamar amor.

      O sexo, aos trancos, quando se fazia inevitável, deixava um solavanco na alma. Odiava.

      Conheceu a outra. Assim, sem querer, sem buscar ou se esconder. Viu e gostou.

      Gostou do cheiro dos cabelos dela impregnando o ar, sua camisa, seu dia.

      Suas palavras irônicas, seus sorrisos dissimulados, seus gestos estudados. Gostou.

      Gostou do sexo elaborado, das inúmeras manchas nos lençóis, do beijo de língua na despedida.

      Levou para casa esse novo gostar.

      A outra ocupava seus pensamentos, suas horas vagas, suas insônias.

      Sentia-se inteiro e inteiro se doava à vida dupla.

      Deu-se conta, aos poucos, que o cheiro dos cabelos da esposa, impregnado nos travesseiros, não era ruim.

      Botou reparo nos gestos dela, estabanados ou serenos. Gostou.

      Gostou do olhar coquete que se insinuava e reclamava amor.

      Sentiu desejo. Tomou-a para si no meio da noite. E gostou.

      Gostou de todas as marcas deixadas nos lençóis, dos gemidos, dos dentes brancos mordiscando seus lábios.

      Do silêncio que se fez, gostou.

      Gostou, sobremaneira, das pernas dela sobre as suas e do sono reparador.

      O cheiro do café, a mesa posta, o olhar brejeiro relembrando a noite. Gostou.

      Gostou do tamborilar dos saltos altos no assoalho. Puxou-a para si. Ela se esquivou apressada.

      Levaram para a rua esse novo gostar.

      Seguiram em seus carros por ruas serenas e curvas amenas até a bifurcação mais próxima.

      Olharam-se enlevados.  Acenaram promessas.

      Ele alcançou o estacionamento, o escritório, as reuniões.

      Suportou a manhã ensolarada, a tarde modorrenta, os telefonemas da outra.

      Ansioso, ganhou a rua estreita que se abriu em larga avenida.

      O semáforo arregalou seus olhos vermelhos. Ele parou. Ao lado, outro veículo.

      Olhou apenas por olhar. Olhou novamente. Engoliu o sorriso. Compreendeu.

      Ali estava ela, sua esposa, guardando descuidadamente os gestos de sua vida dupla e restauradora.

 

Rosas vermelhas

 

 

      A rosa vermelha e o sorriso cativante foram entregues ao final do dia.

      Amélia, olhos baixos, fez um muxoxo de menina e tentou alongar a mágoa.

      Encarou o riso inocente e esqueceu as palavras rudes da noite anterior.

A rosa era tão linda!

 

      Duas rosas vermelhas foram entregues no início da noite por um sorriso suplicante.

      Amélia exibia um pequeno corte na boca. Derramou soluços incontidos e mais algumas lágrimas.

      Olhou as rosas. Sorriu tristemente. Desculpou a ressaca matinal.

 

      Três rosas vermelhas foram entregues, quando duas ou três estrelas salpicavam o pedaço de céu que se condensava diante da janela.

      Amélia, deitada na cama, invadida por todas as dores, relutava em perdoar.

      O sorriso dele, quase paternal, delineava motivos e a absolvição das culpas.

 

      Quatro rosas vermelhas foram entregues quando a madrugada cobria a cidade.

      Amélia, amontoada no chão, ainda recolhia os cacos do próprio corpo.

      O riso infantil implorava por perdão e afagos.

 

      Cinco rosas vermelhas foram entregues, quatro ou cinco dias depois, por um par de olhos desesperados.

      Amélia, de malas prontas, queria ir, queria ficar.

      As marcas arroxeadas e a pele costurada começavam a ganhar tons suaves.

      E suaves ficaram as dúvidas.

 

      Seis rosas vermelhas foram entregues por um sorriso impessoal.

      Amélia, agasalhada por outras tantas flores e pelo brilho das velas, não pôde ver nem perdoar.

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[ve.jpg]Valéria Eik – Contista e poeta, Valéria Nogueira Eik é editora da Revista Conexão Maringá - http://www.conexaomaringa.com/ - e de dois blogs literários: Mosaico - http://valeriaeik.blogspot.com/ - e Era uma vez outra vez! - http://valeriamenina.blogspot.com/. No primeiro, publica seus textos literários e, no segundo, textos de literatura infantil e outras atividades artísticas e pedagógicas voltadas para a infância.