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Nelson Alexandre

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TIPO DAVID LYNCH

 

 

O bife de fígado apodrecia cru em cima da chapa do fogão de uma pequena casa de Space city. Havia algumas cápsulas de omeprazol e alopurinol espalhadas pelo chão da cozinha e as baratas permaneciam quietinhas lá, em seus buracos profundos e enigmáticos.

As formigas picavam o pé do alfabeto, e o alfabeto nem ao menos gritava de dor ou de tristeza.

Não havia motivo para tristeza.

Havia, apenas, motivo para uma inércia voluntária, gerada por anos de espera numa cadeira de rodas. Nesse meio tempo, as têmporas receberiam mais alguns fios brancos de cabelos amaciados por shampoos de marca não barata e de qualidade e preços indiscutíveis.

O nome do cara era João, mas ele vivia dizendo que era John Merrick.

Não havia deformidades no corpo ou no rosto de João, que em dias nublados e de chuvas de canivetes abertos insistia em abrir o seu guarda-chuva de tolices e ser picotado pelas lâminas implacáveis do toró.

João foi até o armário e pegou uma boneca inflável que ele chamava de Laura.

Sentou a boneca de frente a ele na mesa da cozinha, ajeitando seus cabelos, cobrindo os seios desnudos de plástico, pensando em pedir a distinta em casamento.

Amor não há?

Olhava pela janela e via que o mundo havia mudado. As reflexões é que permaneciam as mesmas. A conta de telefone. A conta de água. De luz.

Mas João, ou John, pensava mesmo era sobre o paradeiro daqueles que se diziam seus amigos.

“Sou o Homem Elefante.” Pensava.

De vez em quando alguém pagava uma “conectada” para dar uma espiada em seu ciberespaço bizarro que é esta casa de espelhos retorcidos e mal apurados.

“Sou o Homem Elefante.” Pensava.

Admirado de longe e negligenciado de perto.

“Quer se casar comigo?” Perguntava para Laura que, por sua vez, não dizia nem que sim, nem que não.

Quem quer se casar com o Homem Elefante? Só mesmo a ciência. Somente a estreita relação de cientificismo localizada no gume afiado da ponta do bisturi.

João foi até a geladeira e contou as folhas do maço de rúculas e, quando perdeu a conta, emendou um chute na dieta já seguida de forma irregular e desandou até o bar da esquina.

“Cerveja.”

O homem do bar o olhou com certo desvelo, bem diferente dos demais donos de bar onde bebia sua cerveja.

“Se vai se foder, hein? E a dieta?”

“Foda-se.”

“Tá meio quente.”

“Eu também.”

Engoliu uma garrafa e sentiu a mucosa estufar feito o dirigível Nuremberg. Pagou e se mandou.

Novamente em casa, sentou numa cadeira na cozinha. O bife de fígado apodrecia cru em cima da chapa do fogão.

Laura estava novamente acompanhada e parecia querer dizer a João que estava grávida.

“Quer se casar comigo, Laura?”

Não disse nem que sim, nem que não.

Levantou-se e foi até o aparelho de som. Ficou parado, em frente a ele. Antigo. Anos oitenta. Os MP9 da vida riam daquela obsoleta forma de entretenimento sonoro.

“Vou ouvir Blue Velvet.” Pensou.

O som não encobria o cheiro do fígado cru apodrecendo na chapa do fogão.

“Quer dançar, Laura?”

Não respondeu nem que sim, nem que não.

“Sou o Homem Elefante.” Pensou.

Voltou novamente para a geladeira e começou a contar as folhas do maço de almeirão. Quis dar um chute novamente na dieta, quando Laura interveio.

“Eu caso.”

Olhou por um instante a boneca inflável e constatou que suas formas tinham ganhado derme e epiderme, músculos, veias e artérias, lábios e seios de verdade.

“Sou o Homem Elefante.” Disse.

“Sou Laura Palmer.” Respondeu.

No mesmo instante, nos maços de rúcula, agrião e almeirão, brotaram pequenas flores. O vinil, que ecoava notas como se fossem pequenas estrelas de galáxias escondidas, já não chiava mais.

“É uma menina, João.”

“Sou o Homem Elefante.” Disse.

“Tente não ser, como eu tento não ser uma boneca de plástico.” Respondeu.

Dançavam entrelaçados como dois cavalos marinhos, quando as luzes do mundo resolveram se apagar. Dez horas. Toque de recolher.

Lá em cima, do satélite sentinela que vigia o planeta, o programa de segurança detectava o doce vagar das notas de Blue Velvet, sem nunca cogitar o bife de fígado que apodrecia cru em cima da chapa do fogão.

 

 

 

 

CARTA PARA ARTURO

 

 

Um lamento soa como fuga de si mesmo e, num instante, você se vê preso em um corpo que é o seu, e ao mesmo tempo, é um corpo emprestado.  Eu me vejo em você. Este corpo sente dores. E na ânsia dessa saciedade, se mostra por completo. Isso soa perigoso e, às vezes, desnecessário. Não é o caso.

Caminhamos para uma fase em que dizer “verdade de verdade” fará com que o agente dessa façanha seja implacavelmente destituído de qualquer crédito ou vitrine.

Dizer a verdade já soa como dizer que você não passa de um idiota e que é apenas uma questão de tempo para que você seja “convidado” a entrar no clube da mentira também.

Os rótulos grudarão em seu corpo emprestado, e você ficará com a fama de uma polivalência fora de moda e carregada de frases feitas e análises pueris sobre o que é a “vida” e suas pequenas periculosidades que a cercam como satélites de um planeta longínquo e esquecido.

Estou aqui, sentado, olhando a dança febril da fumaça de um king size queimando no cinzeiro, preocupado com o que vou ensinar para você daqui para frente.

A paternidade acalanta e assombra ao mesmo tempo. Fato.

Hoje resolvi teclar esse texto, tentando por meio dele, encontrar a minha voz e fazer com que você, daqui alguns anos, o leia, e que ele sirva para o seu próprio julgamento e escolha para qual caminho você trilhará.

Você se transformará num trem de cabelos claros e cacheados que irá despertar inveja e paixão. Só que de antemão, vou alertá-lo dos perigos que sua beleza e brilhantismo poderão acarretar:

 

1)           Você poderá ter muitos “amigos” que o cercarão, mas bastará uma única vírgula fora do contexto ditado por eles, que você se tornará órfão, mesmo cercado de “olás” e “boa noite”.

 

2)           As mulheres virão, e essa é uma excelente parte. É sempre bom tratá-las bem, pois é na demonstração do sentimento puro por parte do sexo masculino é que elas farão a nomenclatura daquilo que projetam no “Ser visado” e, muitas vezes, aquilo que nos parece uma alma gêmea para o complemento de nossas lacunas, pode ser ou não uma miragem que o salvará da solidão do deserto da alma. Esse é um “toque” complexo.

 

3)           Cuide bem dos dentes.

 

4)           Tome banho mesmo quando achar que você está limpo.

 

5)           A injustiça parece ser invisível, mas lembre-se, os olhos do mundo não possuem pálpebras. Vivem 24 horas do dia abertos para uma boa ação.

 

6)           Tente ao máximo ser paciente. Paciência não é sinônimo de submissão, mas um homem inteligente sabe a hora certa de distinguir ambos. Hora de servir e ser servido.

 

7)           Amar é fácil, difícil é provar.

 

8)           Tenha uma profissão em que você sinta prazer e satisfação em desempenhá-la. O resto é frustração.

 

9)           Procure tratar bem a sua mãe.

 

     10)        Não esqueça o seu pai.   

 

Um lamento, às vezes, é como o ronco de um motor que já rodou a distância entre a Terra e a Lua num giro constante do maquinário monstruoso. Corpos de cobre dançam nas crateras lunares.

Um dia você imaginará as possibilidades existentes nessa faixa contínua de espaço e tempo. Isso, acho, será uma possibilidade impossível e possível ao mesmo tempo. O instrumento que torna a “verdade de verdade” um fardo mais pesado e monótono. A carga morta de uma embarcação afundada no ribeirão Sarandi.

Tentar o caminho da imperfeição é, ao mesmo tempo, perfeição, a partir da consciência dessa problemática. É o primeiro passo para dizer “verdade de verdade”. Ainda há mentira em mim, é óbvio. Mas posso garantir que é microscópica em relação ao formão de frustrações e ousadias que já esculpi em um dia de nevasca de pó-de-serra. De cachoeiras de cerveja em córregos sujos em minhas veias.

Mas, Arturo, nenhum homem está destituído de uma outra chance. É por isso que ainda respiramos lâminas de barbear em um ar rarefeito e escuro e não morremos. Isso é uma segunda chance. A bola na trave é uma segunda chance. Como é uma segunda chance ter consciência da falta da mesma.

Nós nunca estamos sozinhos num faroeste televisivo. Há sempre uma tijolada pronta para nos deixar para baixo. Agüente a tijolada. Isso provocará curiosidade e admiração, como também, uma série sangrenta de olhares invejosos. Sempre haverá alguém num canto escuro remoendo-se: “Quem esse sujeito pensa que é?”

A gente só manda o mundo à merda, Arturo, quando não têm por quem lutar ou está sozinho nele feito um cão vagabundo. Deitado em algum lugar com uma pequena janela para ver a Lua e tentar uivar um lamento próprio, sem artifícios.

Quando existir uma terra desolada para ser reconstruída, mesmo que num poema torto, escrito sobre olhares de curiosidade e reprovação, aparecerão sonoras risadas de hienas num zênite perdido nas íris dos olhos.

Mas e daí?

O que está feito, feito está.

Essa é a minha “verdade de verdade”. Você cai e se levanta. E o respeito, meu caro, virá não pelas quantidades de idas ao solo, mas pela resistência. Pelo amor desenfreado de fazer aquilo que é (des) necessário.

A “caverna” é o lugar de parada da resistência, mas não tema o escuro. Aprenda a lidar com esse estágio de animosidade de indução a um medo escondido e descontrolado dentro de você. Todos somos pegos por ele. Mas o importante é fazer com que ele não se agigante e exploda a nossa consciência em pedaços desconexos.

Digo isso, apagando a chama da vela. Para que você não me diga que é fácil dizer isso amparado pela luz, pela experiência e um certo ar de reminiscência.

Não é.

Um lamento, meu caro Arturo Batista, é a sua “não-conformidade” quando o pego no colo, quando o que você realmente queria era o chão frio e empoeirado da cozinha para explorar um mar de curiosidades e micro-germes.

Isso é liberdade.

Um lamento, é um lamento, acho. Mas o que realmente me deixa mais esperançoso é pensar que daqui a pouco, ou a qualquer momento depois de uma noite bem dormida, eu vou poder te pegar no colo, mesmo com raios atravessando a escuridão da noite. Essa é a minha “verdade de verdade”, essa vaidade que fez com que nós déssemos a cara pro mundo. Que você nem vai se dar conta no momento. Que é o mais interessante.

Eu sou o cronista de uma Terra não muito distante da sua, uns poucos centímetros do seu “chiqueiro”, calculo.

A gente vai vasculhar os mistérios do chão sujo da cozinha. Mergulhar nesse mar de água salgada e monstros imaginários que a mamãe não quer que a gente vá.

 

 

 

 

EXISTÊNCIA MÍNIMA

 

          Existem divisas no braço rude da fragilidade, que inspiram a redução da capacidade de metabolizar qualquer sentimento de lealdade. Ela abre a boca e mostra uma fileira de dentes como uma correia dentada num motor composto por peças que são órgãos de criaturas bizarras. Ela sopra vanguardas sob as partículas mortas de uma lenda antiga, deitada sobre as descargas elétricas de pensamentos reprimidos. Ela levanta as saias e mostra a entrada de um mundo preso por discursos políticos e fundamentalismos relacionados a mesquinharias caseiras. Ela nunca pede o meu órgão de conexão para uni-lo à sua complexa caverna de surpresas, num casulo de nódea eterna.

        Ela faz jorrar os sonhos nos canais de carne viva, mostrando a sua beleza em um corpo dotado de um fino veneno. Sou o velho oráculo anexado a uma juventude que me liga a uma fonte de energia libidinosa.

         Eu peço para que entre no carro. Ela dá impressão de estar desconfiada de claustrofobias autobiográficas. Pensamentos em caixas de fósforos em chamas. Finalmente partimos.

          Hora ou outra dou uma olhadela nas coxas, na boca proibida que se forma naquelas pernas, e que fazem um discurso apoteótico a favor de que eu possa deslizar as mãos sobre elas. Eu vejo uma poesia suja, vestida com uma túnica de algodão, com papoulas cobrindo cada um dos seios.

          Há um momento em que ela silencia a minha boca de besteiras radiofônicas, pronunciando o meu nome com brasas vivas na língua. Aparenta não querer chupar, mas quer, mas não chupa.

          Língua abrasadora na glande é uma liquidação num dia em que estou duro. Eu tento a aproximação por amizade e consideração. Ataques leves com meus tentáculos de polvo faminto. Labirintos se cruzam num espaço mínimo de bolinação.

          Ela corta a cena e a existência do nosso pequeno filme, assim, abruptamente. Derruba a câmera, vergando sobre mim uma acusação de total assédio, mostrando uma cara de falsa inocência que desaparece depois daquele sorriso de chupetinha não-feita.

          “Qué pará?”

          A noite é fria, chuvosa e nervosa em Space City.

          Os dedos das minhas mãos parecem pit-bulls devoradores de mocinhas. Mas não há acordo. Apenas o velho “brigado, fulaninho!”

          O som da porta batendo e se fechando. A imagem de suas costas nuas se movimentando em direção a um horizonte de discos voadores rasgando o céu e virando uma explosão de gozo solitário.

          Nós existimos somente na zona proibida.

          Num local ermo. Com pântanos gasosos exalando cheiros conspiradores. Gases tóxicos que estimulam o poder de ejaculação da besta de três cabeças e nenhum cérebro. Há, apenas, um número de candidatura sugando pensamentos mesquinhos. Interesses que manipulam um gado novo que é o mesmo gado velho e viciado. Engolidor de ruminações estéreis e promessas de vantagens não-cumpridas.

          Nós não existimos.

          O que existe, na verdade, é uma mancha negra crescendo no hemisfério direito do cérebro, em explícito boicote ao hemisfério esquerdo.

          Quero que ambos se extingam.

          Quero pensar numa existência mínima, desvinculada de todo empolamento de artifícios literários. Quero que ela volte. Dessa vez, não quero o desenho morto e suturado de suas costas indo em direção à gênese do nosso relacionamento natimorto. Eu a quero como todo homem quer uma mulher.

          Empalada nele.

 

 

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NU

 

Sai pela porta da cozinha

Nu

Como se quisesse me entregar

À boca dos cães.

 

A loucura dormia quieta em meus braços

Nascida

Retirada à fórceps

Para arrebentar com o aço

Das prisões do cérebro.

 

O quê um homem tem a dizer

A não ser sobre ele mesmo?

Uma história individual e estranha

No encalço dos seus passos

Como uma sombra fantasmagórica

 

Meu cérebro era um complexo gigante

Desligado durante os seis primeiros anos de vida

Minha “máquina” só seria usada após um curto período de amnésia

Enquanto eu me arrastava

Já adulto

Atrás de algo que já havia dançado.

Um louco procurando o sentido da vida

E as beneficências nos primórdios da existência.

 

Nu

Voltando ao útero materno pra encontrar nada

E tudo ao mesmo tempo

Foi que me lembrei de que já havia   

Dançado com garotas em garagens com pouca iluminação;

Que havia entregado flores;

Passado pela morte prematura

E pelos prenúncios das bombas de efeito sentimental

Que atingiriam as camadas dos confins da Terra.

 

Sou tão louco quanto o mar em fúria

Inocente como um garoto com as mãos nos bolsos

Procurando uma trajetória que não se repita como uma batida cardíaca

Bombeando sangue pros vasos da sua cabeça maníaca.

 

Antítese da idéia contrária

Nu

Dobrando a esquina dos meus sentidos

Procurando o caminho de retorno

Pra ficar no centro do furacão.

 

 

 

DESTRUAM O MANÍACO COM FLORES DE VERDADE!


Quero consertar o telhado da minha vida

Ver as estrelas

Deitado em minha cama

Vendo o céu reproduzir a palavra amor.

Tem de ser assim.

 

Estou com os olhos cobertos por uma substância ainda não estudada

Segurando uma placa que tem escrito: “Atire-se de cabeça”

Mas nós estamos (você também) sentados em sofás velhos

Assistindo televisão.

Nossas mentes são medidas e calculadas

Por aflições estomacais que derretem

O tênis sujo e ensebado dessa geração.

 

A pulsação ofegante

Que gira sobre os próprios calcanhares

E dança feito uma mulher com a tempestade nas ancas

Bem acima do Trópico de Capricórnio,

Bem acima do nascimento da liberdade,

Sai do ventre

Pura

Como é a energia de nossos corpos.

 

Nu

Exilado de mim mesmo

Corpo no chão

E o coração exposto

Logo ao lado.

 

 

 

O CAMPO FERIDO SANGRA NAS MÃOS DE UM MORTO

 

Vejo o campo.

O centro da cidade está destruído.

Atrás de mim

Há os escombros

E uma sombra pronta pra fazer

Correr meus instintos

Como carros envenenados.

 

Quase dobro os joelhos.

Sentindo um peso sobre os ombros

E uma aglomeração em torno

De mim mesmo.

Castelos se erguem e viram cacos.

Não podem ficar em pé

Por causa da tempestade.

O campo está vazio.

O campo está perdido em meio à cratera,

Os corpos e o fuzil.

 

Se não há mais castelos de areia

Pra onde vamos seguir?

No seguimento da morte

Não há mais nada que fique em pé.

Como vamos equilibrar as pernas

Pra não cairmos no chão?

O descuido é a síntese da infância.

 

Meus sentidos em desordem

Encontram um caminho mais curto,

Sem curvas fora do ritmo.

O campo ferido sangra nas mãos de um morto.

Sua prece é baixinha, não prolonga o sofrimento.

O campo é um mundo perdido

Entre o concreto e o mosquito.

 

 

 

A PEQUENA HISTÓRIA DA GRANDE PRETINHA

 

Enquanto o sol cozinhava os miolos dele

Ela ficava sorrindo sem os dentes

Da arcada debaixo.

 

Ela dizia que ele era parecido

Com aquele artista de cinema

Que ela não sabia o nome,

Mas que era bonito

E que era famoso.

 

Ele não era tão durão

Como aparentava,

E ela não era tão frágil

Como parecia.

 

Ela não sabia o que era um soneto

Uma epopéia

Mas era lírica

Não conhecia Henry Miller

Bukowski

Drummond

Leminski

Platão

Camões

E muito menos a teoria da relatividade

Mas sabia o mês que o seu limoeiro florescia

Sabia que aquilo tornava a vida

Mais alegre e mais doce

Que a acidez que a corroia.

 

Ela perguntava por que o governo

Fazia o artista de cinema

Usar um quepe

E um uniforme tão quentes

Pra ficar anotando placas

De carros num sol escaldante

Ele só sabia responder

Que “as coisas são assim mesmo”

Ela não se convencia e preferia vê-lo numa tela grande de TV.

 

Depois

Quando o sol já dava trégua

Ela pedia fiado alguns cartões de estacionamento

Seu cachê teatral

Tragicomédia paranaense

Catulo crucificado em um poste

Ovídio rindo dos usuários

Do sistema público de estacionamento.

Ele não podia negar os cartões

Jesus gostava disso.

 

“Você acredita na salvação?”

Ele ficava mudo

Calado como a pedra do sono

Suado como um animal acuado

“Às vezes penso que não vou agüentar a barra”

Ela guardava os cartões

Ele, a simpatia.

 

Quando chovia

Ficavam debaixo de uma marquise

Contando os pingos d’água

Ela querendo saber o que era Sputinik

Ele, o que era “muganga”

E a vida passava como uma corrente forte

Enxurrada levando os sonhos de ambos

Pro bueiro

Mas não choravam

Riam.

 

Quando o dia terminava

Era como a linha final de um poema

Como a criação de algo maravilhoso

Tendo o nada como ferramenta de trabalho

Um sujeito anotando as placas dos carros da vida

Caminhando numa faixa de mão única

E a pretinha contemplado um artista anônimo

Longe dos sposts de luz

Do sucesso

Cada um pro seu lado

Cada um na sua via

Cada um,

Cada um.

 

 

 

CABEÇA PRA BAIXO PERNAS PRA CIMA

 

O que é a vida, se não, ficar de pernas

Pro ar coçando os bigodes?

Enquanto todos já enlouqueceram

De tanto perderem horas infinitas

Louvando o trabalho

Como um bando de robôs.

 

O mesmo sujeito que diz que ama o trabalho,

É o mesmo que sonha estar praticamente morto

Dentro de uma rede,

Apontando para seus comandados

A síntese da sua fé:

 

TRABALHEM

PRODUZAM

MORRAM PELO PROCESSO EM SÉRIE.

 

Organizar, padronizar, emitir palavras de incentivo

Para que você não caia

Nos encantos da preguiça.

Ah, não, você não pode se dar ao luxo

De ficar o dia todo sentado num gramado

Olhando o sol nascer e morrer,

A lua brilhar e apagar,

Um pássaro defecar e depois sair voando.

Não, você precisa cortar a grama,

Não dar muita bola pro sol e pra lua,

E muito menos,

Saber se pássaro caga ou não.

 

Você é muito importante para o desenvolvimento do progresso.

Você precisa trabalhar o aço, o aço, sim, é forte,

É a catedral e orgulho da sociedade,

Agora, flores?

Que preocupação há com flores,

Com pássaros, sol, lua, insetos, grama, riacho, amor, vida, intensidade,

Compreensão, sabedoria, enquanto você tem o aço pra ser trabalhado.

 

Deixe essas preocupações

Com seus superiores,

Que amam você que trabalha o aço

Todos os dias e não dá confiança aos livros.

Pra que ler livros, não é mesmo?

Pra que ficar sabendo que vagabundos

Também podem ser gênios, enquanto você tem o aço

Esperando ser trabalhado.

Enquanto o aço espera ser transformado

Em armas que convencerão os que preferem

Ficar o dia todo pensando a respeito da dilatação

Da cloaca dos passarinhos?

 

Pra quê o saber?

Enquanto todos esperam de você

Responsabilidade e seriedade

Pra matar o palhaço que mora no órgão

Que impulsiona todo o fluxo

De pensamento...

 

VÁ TRABALHAR O AÇO

SEU PALHAÇO

VÁ SER O QUE ELES QUEREM QUE VOCÊ SEJA

SEJA PADRÃO.

 

 

 

 

TÔ VIVO

Que cachorrada louca

Eles latem sinfonias de erros não esquecidos

Justamente

Porque é no não esquecimento

Que partem as primeiras lembranças

Das coisas boas que já fizemos.

 

É uma noite quente e nostálgica

Aqui

Em minha cidade

As pessoas estão andando por aí

À procura de diversão e aconchego

Duas coisas mínimas

Num mundo de coisas máximas.

 

Não dá pra agüentar o tranco

Tem vezes que não dá

Mesmo com a cachorrada louca

Fazendo uma algazarra coletiva

No meu ouvido de Lobo da Estepe

 

Tô sentado

Com os sentidos surfando por ondas cerebrais

Que se encontram num mar de mercúrio

E de chumbo quente.

 

Tô vivo

Cercado por pessoas que comem bifes à parmegiana

E beijam seus copos de conhaque

Antes da goela suplicar que eles escorreguem

Por ela

Queimando o asfalto de carne viva da laringe

Fervendo a mucosa do estômago

Chapando a paciência que anda olhando pro relógio.

 

Tempo é dinheiro!

Como dois e dois são quatro

E a melhor parceria do mundo

É arroz com feijão.

 

Que cachorrada louca

Não solta nunca dos flancos

Da carne saborosa

Nem de dente

Nem de olho

Nem de nada.

 

Tô vivo

Tropeçando aqui e acolá

Às vezes mais manso

Às vezes mais pastor alemão.

 

 

 

 

OBRIGADO, SENHOR

 

Obrigado, Senhor

Por me fazer um covarde que não mata ninguém.

Obrigado, por me conceder o pecado do assassinato

Somente na página branca da literatura underground,

Em algum lugar perdido.

Obrigado, por fazer de minhas mãos,

Metralhadoras cuspidoras de poesia.

Obrigado, pelo fígado ruim, pela gastrite,

Pelo refluxo gástrico, essas pequenas coisas que me lembram

Que ainda estou vivo.

Obrigado, pelo ódio do inimigo,

Que me faz melhor do que eu sou

E desperta o meu amor.

Obrigado, pelo sorriso da velha senhora sem dentes

Que diz que pareço com artista de cinema.

Obrigado, pelo pulso firme que me levanta do chão.

Pelo soco no rosto que mostra o sistema nervoso

Atento ao menor chamamento.

Obrigado, por conceder sabedoria à uma mente

Limitada e cheia de interrogações.

Obrigado, por ser um olho piedoso sobre as nuvens.

Obrigado, por não deixar que montem em minhas

Costas e me chamem de pangaré.

Obrigado, por ainda me chamar de filho.

Obrigado, por ainda não me entregar na mão do “Cão”.

Obrigado, por me atrelar ao pé das orações dos santos

E fazer com que padeçam por minha falta de causa.

Obrigado, pelos vários portos que o navio de incertezas

O qual comando, possa atracar.

Obrigado, pelas boas almas que me alimentam

Quando não sinto a mínima vontade de trabalhar

Ou obedecer as ordens do imbecil com cargo comissionado.

Obrigado, por me fazer com nervos de aço

Sem possuir a força do guindaste.

Obrigado, pelos raios que transpassam

A massa encefálica e me enchem de idéias novas

Pra criar arte no meio do nada.

Obrigado, pelo interesse em fazer chegar a alguns

Olhos e ouvidos esse poema que ninguém quer ler

Ou ouvir.

Obrigado, Senhor, agora posso dormir.

 

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Nelson Aleandre 3Nelson Alexandre é contista, poeta e, atualmente, formando do curso de Letras da UEM. Já teve um conto publicado com menção honrosa no Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio, em 2006. Para conhecer mais seu trabalho, basta visitar seu blog: http://encruado.zip.net.

                                                                      

 

 

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