-------------------------------------------------------------- Gisele Cezar -------------------------------------------------------------- PARA ALÉM DA MORAL Ah! Se eu pudesse ser
artista e representar a ética com máscaras coloridas. Séria e soturna eu
gravaria na lápide da vida, a lágrima mais cristalina da decomposição
solar. Ah! Se eu pudesse ser
poeta e cantar a dor das odes infernais. Iluminada, eu messiânica,
traduziria a salvação em rimas universais. Ah! Se eu pudesse ser
sonora e pitagórica dedilhar notas musicais. Sinfônica, eu contemplaria
as ideias das vicissitudes como entes emocionais. Ah! Se eu pudesse ser
filósofa e pensar a vida como conceito estrutural. Peripatética, eu
teorizaria o ser como fenômeno acidental. Ah! Se eu pudesse ser
pintora e caricata pincelar expressões faciais. Intensa, eu beijaria as
bocas vermelhas e suicidas dos impulsos sexuais. Mas a transcendência do
momento desfaz qualquer causa e movimento, contendo o apetite da vontade em
ato de veracidade. E sem intenção de conhecer
mais, sentada na poltrona da sabedoria, devo a minha falta de vontade à
depuração de meus ideais. ENCANTAMENTO Estranho encantamento Sugeriu-me o vento Na pedra mais alta De um vale assombrado Assobiou sem eco O meu reflexo Um outro reflexo Espelhado no inverso Do espaço que me cabia Intangível no intocado Destino que se escrevia Como habitar sem movimento Perante as memórias do
sagrado? Ah! Como quis correr E me embrenhar no meio do
mato E me prever no cheiro de
um regato Deixando que o tempo como
contador de histórias Trouxesse os gestos
conquisto De apelo tão esquisito E em um sussurro me
segredasse Sobre a intransparência do
não visto Infortuito coração De quantas angústias
permeou-me esse vale De incontidas recordações Recordações que não eram
minhas E que tão bem eu lia Em minhas impressões Como o conto da lareira Da menina brejeira Que de outrora Fulgurou a aurora no fogo
de seus cachos Tão impessoal, impresente
quanto irreal Era o amor que se escondia Congelado em cascata de
cristal De um céu sem horizonte Desvanecido Nos abraços de seus montes ETERNO RETORNO Outro embrião poético Acompanha-me Arrumo o dia Faço a cama Tento em vão Conter o fluxograma É sempre essa vontade Do lençol alheio E de no espelho Ver o mundo por inteiro Como empírico experimento Dedilhado ao vento Instrumento desafinado Descontinuo, ilhado A buscar tons Texturas e batons Salvo conduto abissal Será atávico? Esse devir animal
PÃO DOS HOMENS Em meus seios cheios Sustento versos ateus Tudo o que quero São falos entre as pernas Me viro de quatro Um quarto de giro Te admito de fato No ente que miro Sou o leite das cadelas O cio das donzelas de todas as mães as
auréolas Que profanam os leitos
seus Sou hormônio de bigorna Corpo que com outro corpo
se forja Que tine e brama e nos
ossos se arroja Sou carne espumada Epiderme em larva que
aguarda A saliva crua De glande dura Rasgar os beiços meus Sou o maná que cai do céu E quem de mim come Jamais terá fome Jamais terá sede Partiu-se o véu Do tabernáculo do Senhor E tudo o que quero São falos entre as pernas
PEQUENO MANÁS Estou ilhada em uma casa. Cercada de casas por todos
os lados. Porém ninguém estende o
sol no poente Ou apanha semente junto à
nascente. E nesse labirinto mítico
de olhares Nenhum me traz o fio de
Ariadne. Estou com fome... E o mar
está tão distante! Jogo minha rede no
quintal. Quem sabe eu pesque alguma
ilusão. O silêncio congestiona uma
porção de ruídos. Vinte e quatro horas é o
tempo desta flor. Até parece Que neste metro quadrado
de estrelas Ouço uma risada cor de
trigo.
SOPA, PEDRA E VIOLÃO Que mente maluca Pensei um dia É que eu não sabia É que eu não sabia Do fogo que abrasa o mel Do sonho que resvala o céu Incandeia o corpo meu Incendeia o peito teu Se eu vou Para casa agora eu vou É porque não mais havia É porque não mais havia Nas lembranças fantasmas
de saguão Nas paredes retratos de
porão Só se sofria, só se fazia Amor que se descobria Na ausência do mar Na falta de ar Solicitude solidão --------------------------------------------------------------------------------------------- Gisele
Cezar – Nome artístico de Gisele
Cristine Cerqueira Cezar Pereira Martins. Artista plástica e poeta. É formada
em Filosofia pela Universidade Estadual de Maringá. |